MicroAventura # 1 – Perseguindo uma Estrada Interior

O dia começou escurecido, frio, úmido e pouco convidativo. As pessoas comemoravam com ócio, comilança e bebedeira o primeiro dia de 2013, como manda o rito capitalista de passagem anual. Além da noite mal dormida e da habitual ressaca e preguiça, próprias do primeiro dia de Janeiro, a canção monótona, longa e aborrecedora da chuva açoitada por pequenas acordes dissonantes de vento terminava por manter as pessoas protegidas em sua zona de conforto. De todo o animo que eu obtivera alguns dias atrás para realizar um trajeto de bicicleta por um caminho ainda não percorrido, para começar com energia e determinação o novo ano, restavam agora apenas às buscas em imagens de computador e os traços incertos dos possíveis caminhos que poderiam ser trilhados. Quando toda a esperança parecia ter se escoado com a chuva, está resolveu decretar uma breve trégua. Equipado com abrigo de chuva, bicicleta, capacete, garrafa de água, câmera fotográfica e um olhar infantil do mundo, fui à busca do meu destino.

Trecho nº1 – Estrada Velha para Castro                                                                     Dificuldade: média Distância: 10 km

Iniciei o percurso na Av. Monteiro Lobato, próximo ao Núcleo Baraúna, numa das saídas ao norte do Município de Ponta Grossa-PR, no Sentido Castro. Já no primeiro quilometro à direita desta avenida em uma pequena e inclinada subida, seguindo pela UTFPR, tem início a Estrada Velha para Castro, que deste ponto deixa de ser pavimentada. Em sua primeira parte a estrada segue entre um vilarejo e diversos motéis de um lado, e o Rio Pitangui do outro, onde se encontra uma das fedorentas estações de tratamento de esgoto do município. Percorridos cerca de 2 km, o percurso volta ser coincidente com um prolongamento da Av. Monteiro Lobato, passando por sobre o Rio Pitangui, ao lado do Clube Verde. Terminado este trecho começa a sua segunda parte que veio acompanhada de uma garoa fina e persistente. Este trecho é menos urbano que o anterior marcado por chácaras de fim de semana e outras propriedades rurais, se desenvolvendo em uma longa e suave subida percorrendo neste trecho cerca de 7 km. Nas proximidades da Fazenda Cassandola aos cerca de 5km deste trecho, um arroio denominado de “Caixa d’Água”, afluente da margem direita do Rio Pitangui, representa a fronteira entre os municípios de Ponta Grossa e Carambeí

Trecho nº2 – Boqueirão – Divisor de águas do Rio Cassandoca
Dificuldade: média Distância: 12km

Já no Município de Carambeí a chuva fina incessante continua a fazer companhia, e neste trecho volta a coincidir com uma estrada pavimentada, dessa vez a PR-151, nas proximidades da área urbana do município. Seguindo por cerca de 2,3 km, chega-se ao Bairro do Boqueirão, onde segue a esquerda pela Rua Xingu e a Direita pela Rua Rio Paraná que continua saindo do bairro com a denominação de Rua Plácido de Castro perfazendo um trajeto de cerca de 1,5 km. A partir daí cruzando uma ponte sobre um arroio, o caminho se desenrola por uma estrada rural de chão batido que segue suavemente por um divisor de águas do Rio Cassandoca.
Neste trecho a paisagem é dominada pela monotonia de latifúndios com monoculturas milho e soja. A paisagem acinzentada foi embranquecendo e alterando o lugar e o céu pareceu ir baixando até tocar o chão, por um momento me senti adentrar em um mundo de névoas inebriantes. É estranho como a neblina parece aumentar a solidão das coisas e o abandono do lugar, as árvores parecem isoladas uma das outras de forma que a gente só nota cada uma, à medida que vai se aproximando dela, enquanto a outra desaparece, um homem que surge e some em seguida, deixando somente o som distante de seus passos na estrada parece alguma coisa fantasmagórica, um cão que só pode ser identificado por seu brado assustado transmite pavor, a igrejinha esquecida na beira da estrada parece ainda mais triste sem paisagem para acompanhá-la. Cada curva na estrada vai ficando mais misteriosa, aumentando a ansiedade da viagem e o desconhecido do lugar. Por um momento me senti totalmente desorientado e medroso com o porvir das horas, pois havia saído depois das 16:30 h de casa e não trouxera nem um instrumento de navegação que não fossem os sentidos e a intuição, nem uma lanterna, celular ou relógio, me sentia incomunicável e solitário nesse universo enevoado e incerto. Por volta dos 5 km, nesse caminho, atravesso a neblina fumegante que vai se desmanchando em retalhos e penetro sem perceber no perímetro de Ponta Grossa. Apesar de que o frio se fizesse sentir devido à roupa encharcada, a chuva cessara e a névoa se desfez numa bifurcação da estrada na qual o percurso da esquerda me conduziu a uma porteira da Fazenda Panorama, mas alertava que era proibido prosseguir, alguns arames rompidos e um trilha lamacento indicava a rota para ignorar a proibição acredito que por essa atalho chegaria ao belo cenário escarpado manancial de alagados um represamento do Rio Pitangui e Jotuba utilizado para geração de energia, abastecimento de água e um contraditório lazer com casas de fim de semana na sua margem, preferi perseguir o caminho da direita que me pareceu mais desafiador abandonando a comodidade da estrada, este percurso revelava a cidade de Ponta Grossa pequenina e distante, e logo descia freneticamente em direção ao Cânion do Rio Cassandoca.

Trecho nº3 – O Cânion do Rio Cassandoca Dificuldade: média/pesada Distância: 6 km

A estrada acabava num carreiro escorregadio e íngreme na beirada de um plantio de milho que ia gradativamente escorregando por uma encosta para o interior de um cânion, quando os freios da bicicleta começaram a falhar devido a areia, o barro que se acumularam nas rodas. Segui arrastando os pés na lama para não deslizar morro abaixo e o milharal deu lugar a um bosque com pinus sulcado por uma trilha de motociclistas e poucos metros adiante me encontrava na margem de um riacho cantante que saltitava em duas pequenas corredeiras até despencar estrondoso numa única queda maior. Cruzei o riacho e pedalei por alguns minutos sobre um campo castanho que desaparecia numa mata ciliar. No interior da mata a trilha estava bastante erodida pelo furor das motocicletas, o que impedia de usar a bicicleta, sendo necessário carregá-la sobre os ombros ladeira abaixo num caminho tortuoso e liso que se encontrava com o Rio Cassandoca. Fui percorrendo sua margem por uns 150 m ora pedalando, ora carregando a bike, até o ponto em que foi preciso atravessá-lo. Com a chuva nível normal do rio que mal deve cobrir os pés subiu um pouco, mas não foi difícil encontrar a outra margem com água na altura dos joelhos.
A incerteza do horário que poderia trazer a noite em breve, caso meu ritmo se mantivesse e a sabida distância de casa me fez achar que havia demorado tempo demais nesse caminho, o que não deve ter sido mais do que meia hora, mas que também não percorreu mais que um quilômetro. Caminhei ainda um pouco pela mata, agora, numa subida cansativa até encontrar um caminho áspero de pedras, embora esse trecho fosse mais duro e quase não possibilitasse pedalar, ele me agradava muito, pois tinha uma aura selvagem que revelava pouco a pouco a extensão e as partes mais abruptas do cânion onde era possível vislumbrar a distância uma grande cachoeira. Este trecho que sobe pela margem direita do Cânion com cerca de 1 km, segue tangenciando a divisa de municípios, entrando e saindo, ainda, umas duas vezes de Ponta Grossa. Estava em duvidas se este caminho iria retornar para Carambeí e alcançar a monotonia das estradas ou desceria acompanhando a escarpa direita do Cânion. Me alegrei ao vislumbrar do topo do espigão que separa as águas que correm para o Cassandoca e um pequeno afluente a sua direita com colinas verdes sustentadas por degraus de arenitos.

O Cânion do Rio Cassandoca se inicia nas proximidades do Bairro do Boqueirão, no reverso da escarpa devoniana, uma importante estrutura geológica que forma um gigantesco degrau separando o primeiro e o segundo planalto paranaense. O Cânion se desenvolve em duas partes: a primeira mais ao norte em Carambeí com 3 km de extensão é orientada por uma falha tectônica típica no sentido noroeste-sudeste (sentido do arqueamento da região durante o evento de separação dos continentes a milhões de anos atrás), neste trecho a profundidade média é de 50 m, pois o leito do rio está mais elevado e apresenta um desnível menor de cerca de 20m (entre as altitudes de 990 e 970 m). A segunda porção mais ao sul com uma parte em Carambeí e outra em Ponta Grossa com 4 km de extensão é orientada por uma falha no sentido norte-sul (controlada por fraturas em granitos muito antigos que se encontram soterrados abaixo da camada de arenitos que aparece constantemente na paisagem). A sua profundidade média é maior com média de 100 m e o leito do rio está mais entalhado e com desnível de cerca de 100 m (entre as altitudes de 970 e 870 m, onde encontra o Rio Pitangui). Em sua porção norte as lavouras avançam até uma pequena faixa de campos na borda dos precipícios e ao Sul os florestamentos com pinus se espalham e contaminam toda vegetação num raio de quilômetros inclusive na floresta com araucária que cobre o interior do cânion.
Segui meu caminho numa trilha entre os pinus que impediam a bela visão do Cânion, concentrado em não me estatelar numa arvore, fui freando com os pés arrastando no chão enquanto descia desviando a erosões maiores. Na saída do bosque com pinus um riacho formava pequenas corredeiras. Encostei a bicicleta embaixo de uma delas para tirar o barro e a areia, fiz o mesmo com minhas pernas e roupas. Deste trecho em diante voltei a pedalar atravessando um capim que alcançava altura do guidão, logo a vegetação foi ficando rasteira, pedregosa e a inclinação do terreno tornava a descida muito arriscada em alguns momentos em que seguia caminhando, correndo ou trambalhando. Os raios de sol ensaiavam um pequeno sorriso entre as nuvens cinzentas, os passarinhos entoavam seu canto de despedida para o dia e as flores se insinuavam para tarde. Continuei descendo, tropeçando e me equilibrando. Adentrei e sai da mata, acompanhei o rio e voltei a cruzá-lo, atravessei outra vez os pinus e os campos num trecho muito bonito com marmeleiros do cerrado e afloramentos de arenitos com tonalidades amareladas e alaranjadas que pareciam estar em harmonia com os sentimentos de alegria e contentamento que me causaram aquele lugar e a presença inesperada do sol com sua luz dourada, tardia e desacreditada. Encontrei, ainda, um abrigo, já conhecido, de pedras com pinturas rupestres composto por figuras de aves e veados, riscadas com pigmento ferruginoso pelos primeiros humanos que viveram na região. Uma cadeia de pensamentos povoaram minha mente com questionamentos acerca de seus modos primitivos de vida; sua capacidade de observar, sentir, pressentir e venerar a natureza; sobre os animais extintos que podem ter existido na região; sobre o significado que poderia ter aquelas figuras. Seria uma forma filosófica de se expressar, de registrar a efêmera passagem por esse mundo para os que viriam mais tarde, havia essa consciência e esse desejo, ou estavam apenas representando seu

mundo para seu tempo e sua comunidade, como uma forma de linguagem escrita e simbólica, poderiam representar rituais, desejos de caça, o próprio resultado da caçada, uma representação do seu mundo como uma fotografia ou a demarcação de territórios? Por alguns minutos um ar solene de ancestralidade e mistério me acompanhou como se a ligação com essa paisagem, esses campos, pedras e rios fizesse parte de alguma memória genética da espécie humana, o que de certa maneira explicaria essa necessidade indômita e nômade de percorrer lugares afastados e naturais, e o sentimento de volta para casa e renovação que a natureza proporciona. Deixei para trás esse sítio e me encontrava próximo a um pontilhão com uns 30m de altura sobre o Rio Pitangui da estrada de ferro no trecho Ponta Grossa-Maracanã.

Trecho Final – Estrada de Ferro – Caminho de casa Dificuldade: média Distância: 9,5 km

O céu que se transformava rapidamente parecia inverter meus estados interiores passando do medo inicial de ficar preso no escuro ou na névoa sem saber ao certo qual caminho seguir ou ser perseguido por cães soltos em alguma fazenda dava lugar para a satisfação de estar realizando uma bela microaventura rompendo com a aconchegante zona de conforto e conhecendo um novo mundo. As cores cinzentas pareciam empurradas para fora da minha atmosfera visível, passando por uma faixa média de azul violáceo e amarelo alaranjado nas linhas próximas do por do sol onde tudo parecia mais vibrante e alegre. Cruzei o pontilhão e segui por um caminho suave que acompanha a ferrovia até cruzar outro pontilhão com cerca de 50 m de altura conhecido com ponte dos escoteiros, um bom lugar para pernoite com água de bica e cachoeira, ou primeira ponte de uma sequencia de três no sentido Ponta Grossa-Alagados um caminho harmonioso cercado de colinas e afloramentos de rochas que já percorrera inúmeras vezes deste a infância. Quando cruzei o pontilhão o sol a minha frente desenhava apenas os contornos dos trilhos, escurecendo o restante do caminho e explodindo em tonalidades quentes ao seu redor e flutuando em cores rosadas, azuladas frias e esticadas quando olhava para trás. A noite me envolveu acolhedora devo ter percorridos uns 3,5 km acompanhando o romance da ferrovia até seguir por uma estrada usada para chegar a uma subestação de energia e captação de água. A essa altura os freios não tinham quase função alguma com as borrachas desgastadas pela fricção da areia com os aros, desci pela estrada com cuidado por uns 800 m até encontrar uma estrada que subia para estação de tratamento de esgoto citada no começo deste relato. Escalei uma subida íngreme pedalando bastante cansado por uns 900 m, quando alcancei o ponto mais alto que voltava a descer. Desse ponto a cidade se mostrava iluminada com uma constelação entre um céu mesclado de tons cinzentos, escuros e avermelhados ainda sobre os últimos efeitos do ocaso e as primeiras horas da noite. O trecho que descia por uns 2 km, pela estrada, numa encosta íngreme recortando as curvas de nível de uma colina começava numa linha reta que se tornava sinuosa com diversas ondulações construídas provavelmente para diminuir a energia das enxurradas durante as chuvas e controlar seus efeitos erosivos. Cruzei a estação de tratamento de esgoto literalmente sem freios tentando não cair na piscina de esgoto. Em seguida encontrei o trecho da Estrada Velha para Castro dos primeiros quilômetros desse microaventura. Subi e descia, ainda, umas duas vezes já na área urbana de Ponta Grossa até chegar de volta na casa onde os familiares me aguardavam apreensivos, pois demorei nessa empreitada cerca de 4:30 horas, retornando por volta das 21:00 h, sentindo-me fisicamente cansando, mas mentalmente e emocionalmente pronto para enfrentar os desafios cotidianos do novo ano.

Estrada sobre o Divisor de Águas do Rio Cassandoca

Fim de Tarde no Caminho da Estrada de Ferr0

Trilha nos Pinus

Cruzando o Rio Cassandoca

Link para baixar Gps Tracklog/kml da MicroAventura :  http://pt.wikiloc.com/wikiloc/view.do?id=3911281

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